sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Hannah e suas irmãs

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua intensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas.



E. E. Cummings

http://www.youtube.com/watch?v=EGIKsW_VeGs

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Nosso amigo Woody

"Generosas e sublimes, se por sublime entendermos tudo aquilo que aterroriza o fundo mais fundo das nossas certezas. E se Dostoievski estiver errado? E se o crime não implica necessariamente um castigo? E se a "consciência", como Nietzsche afirmava, é um anacronismo da civilização judaico-cristã para aprisionar os homens num mundo sem Deus? "Crimes e Pecados" é um anti-Dostoievski por excelência. Imagino título de primeira página: "Amante mata amante". E o lead: "Mas descobre que o ato não pesa na consciência". Assustados? Eu fiquei. Quando assisti pela primeira vez a "Crimes e Pecados", senti todas as certezas a ruir com o passar do filme. A minha alma é como o rosto de Martin Landau: consumida pela culpa, no início; liberta de qualquer culpa, no final. Ou quase. A natureza subversiva do filme é a única culpa a que não podemos escapar."
Trecho de um texto de João Pereira Coutinho escrito em 2005. A matéria inteira vale muito a pena ser lida.
Paulinho Moska falando por mim:
Tudo se compõe, e se decompõe/A velocidade que emociona/É a mesma que mata/O sorriso antigo agora/É lágrima barata/A vida não pede licença/E muito menos desculpa/O perdão é que possibilita/O nascimento da culpa/
(Jardim do silêncio)
Ao som de: Cheio de Vazio - Paulinho Moska

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

As comidas chinesas que me salvam do marasmo

Ganhei o livro Conversas com Woody Allen (Eric Lax) e por causa disso ouço a voz do Woody até quando acordo! O assunto me persegue ou eu o persigo, e sempre acabo metendo o diretor no meio das conversas. Logo, nada mais natural que a ampliação do meu interesse por seus filmes.
Esses dias revi o indicado ao Oscar A rosa púrpura do Cairo. O pano de fundo é a repercussão da crise de 1929 nos Estados Unidos. Um ambiente que não propiciava grandes esperanças, nem pretensões. Por isso, as pessoas se acomodavam. E assim era com Cecilia, que trabalhava como garçonete e era casada com um homem que não a amava e a tratava mal.
Seus únicos momentos de abstenção eram quando ia aos cinemas, quase sempre sozinha. Ao ver a estréia de A rosa púrpura do Cairo, Cecilia ficou maravilhada e por isso assistiu ao filme diversas vezes. Quando o personagem do filme Tom Baxter percebe a presença contínua da moça, ele sai da tela para conhecê-la melhor e se apaixona. Os personagens do filme se desesperam, pois sem ele não haveria continuidade. O ator que o interpreta, Gil Shepherd, e o diretor foram avisados e tiveram que tomar providências. De uma maneira inusitada, Cecilia conhece Shepherd e, como uma grande fã, tece elogios a sua carreira. O ator passa a gostar da companhia da garçonete que sempre o engrandecia com seus comentários.
É quando Cecilia se vê divida entre a perfeição de uma pessoa irreal, Tom Baxter, e as promessas de fugir para Hollywood com Gil Shepherd. Cecilia opta pelo ator e não pelo personagem, uma escolha praticamente inevitável. Tom Baxter, que não tinha mais nada a fazer no mundo real, voltou a tela e o filme pôde seguir seu rumo.
Cecilia foi para casa arrumar suas malas gritando ao seu marido que ia deixá-lo de vez (houveram outras tentativas, mas a garçonete sempre voltava para ele). Quando a moça vai encontrar Gil Shepherd, vê que não há mais ninguém. Pergunta ao rapaz que trabalhava no cinema onde estaria o ator e sua equipe e ele diz: "Logo que o personagem voltou para tela, eles trataram de ir embora daqui".
Mas Woody não nos deixa assim tão descrentes. Apesar de desiludida, Cecilia entra numa das salas de cinema em que está passando um filme com Fred Astaire e Ginger Rogers. Em seu rosto podemos ver o poder da sétima arte que dá a ela uma razão de abrir os olhos de manhã e de continuar seguindo em frente sem se entregar.

Aqui um trecho editado bem toscamente que mostra o final:
http://www.youtube.com/watch?v=rSIVe1MlJ9M

O filme foi feito em 1985, mas a história se passa na década de 30. Woody atribuiu a ele diversos aspectos de filmes antigos: personagens estereotipados, diálogo clichê, e embora o roteiro seja original, as idealizações românticas obedecem ao estilo clássico. Tudo para ambientar ao tempo em que a narrativa é desenvolvida, e foi muito bem sucedido.

Num trecho do livro Conversas com Woody Allen, o diretor resume bem a intenção de A rosa púrpura do Cairo: "A Cecilia precisava decidir e escolher a pessoa real, o que era um passo à frente para ela. Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona. Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar, mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa".

Ao som de: Modern Nature - Sondre Lerche e Regina Spektor